Silvio Bermann


A cada um, o seu quinhão

 Na minha adolescência, em Sant’Ana do Livramento, costumava encontrar pelas ruas e sobretudo acomodado nas escadarias, entre as colunas gregas do prédio do Fórum, um velho de longa barba e cabelos brancos, vestido com trapos e um inseparável sobretudo que se parecia com aqueles usados pelos soldados confederados da Guerra da Secessão americana.

 Sentado ali, ou em um dos bancos da Praça General Osório, estava sempre lendo um jornal ou uma revista, ainda que exemplares antigos ou aos pedaços. Seu rosto era marcado por muitos sulcos e rugas, causados provavelmente não apenas pela idade, mas também pelo sofrimento. Via-se que tinha, com certeza, alguma cultura. Seu silêncio também era marcante. Quando o cumprimentava, apenas acenava com a cabeça. Também assim, no máximo com um agradecimento, retribuía quando eu lhe entregava algum material de leitura, que via-de-regra carregava comigo. Eram bons tempos aqueles, em que na primavera da vida e sem maiores preocupações, eu tinha como alvo a leitura do próximo livro ou um encontro com os amigos para alguma festa ou as intermináveis discussões filosóficas sobre a vida.

 Certo dia, decidi que chegara o momento de conversar um pouco com aquele velho para saber, afinal, quem era e qual sua história. Como sempre, levei-lhe alguns periódicos e acabei matando minha curiosidade a seu respeito. Ele era romeno, país da antiga Cortina de Ferro, de influência soviética, um professor, pessoa de muita cultura que falava vários idiomas e veio para a América do Sul fugindo por questões políticas, indo parar na fronteira Rivera-Livramento.

 Já contei outra vez essa história, aqui na Página. Uma lição de vida que guardo sempre para me lembrar que as aparências enganam e por trás de um mendigo pode estar um sábio, e alguém de aparência nobre e distinta pode esconder um crápula que ergue o edifício de sua vida sobre os escombros da desgraça alheia. Nunca me agradou a denominada ‘guerra de classes’ apregoada por alguns ideólogos. A questão nunca foi de ricos contra pobres, empresários contra operários, quem come caviar contra quem sobrevive com arroz e feijão, quem anda de carro importado contra quem pedala uma bicicleta. Mas, sim, quem tem caráter contra quem não o possui, quem é profundidade contra quem é superfície, quem respeita a vida contra quem a despreza, quem possui um ideal contra quem é vazio e menospreza os ideais dos outros.

 A vida sobre a face da Terra nunca foi calmaria, ao contrário, vivemos em tempestades constantes, em conflitos de interesses e de combates entre diferentes degraus existenciais. O amanhã a Deus pertence, diz a sabedoria popular. Talvez evoluamos ainda para um estado de coexistência pacífica e harmoniosa. Não o sei, exceto pelo que poderíamos acreditar das falas de místicos e profetas cuja transcendência não me foi possível atingir.

 Só sei que, enquanto esse mundo novo não for alcançado, mal ou bem o que temos para disciplinar nossa vida em sociedade são os regramentos que criamos para adquirir alguma civilidade, as leis que determinam - inobstante sua relatividade no espaço-tempo e no contexto geográfico e cultural -, o que é certo ou errado, o que pode ou não ser feito.

 Fundamental, admito, que o discernimento e a orientação sejam proporcionados desde a tenra idade sobre o código que permite vivermos em sociedade, a educação que determina o Norte que todos os homens devem obedecer para estabelecermos ao menos uma relativa harmonia comunitária.

 Entretanto, impossível dispensar o rigor que deve ser aplicado aos que desrespeitam aqueles regramentos. O castigo aos criminosos tem o caráter retributivo (a pena, propriamente dita) pelo mal que fizeram; de prevenção, pelo exemplo que proporciona aos demais sobre o que acontece com quem viola o código; e reeducativo, tentando reinserir o que erra à sociedade que foi atingida pela sua má conduta. Este último objetivo, porém, com o sistema atualmente vigente em nosso País, é tarefa dificilmente alcançável na maioria dos casos.

 Devemos, sim, construir mais escolas, mas a edificação de mais presídios é também fundamental, exceção talvez para os que preferirem levar marginais para dentro de suas casas; devemos, sim, educar para prevenir a delinquência, mas também punir exemplarmente os que optarem por esta última; devemos, sim, enaltecer e apoiar as boas almas que se dedicam à ressocialização, a levar a fé e a palavra de Deus para dentro dos presídios, mas paralelamente proporcionar todas as condições para as forças de segurança agirem dentro dos limites da lei reprimindo quaisquer ações que estejam voltadas contra a sociedade ordeira e cumpridora de suas obrigações cidadãs.

 Nesta altura, o bordão parece apropriado: devemos tratar de forma diferente os desiguais. Tolerância zero contra o crime, em todos os níveis, é o que devemos esperar deste momento de esperança para a Nação brasileira. Carpe diem!

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