Silvio Bermann


 O Cristo de todos e de cada um de nós

Época de Natal, tempos de falar em Jesus Cristo, o Nazareno. Habitualmente, uma conversa ou discussão alicerçada na fé, caminho por demais pantanoso considerando-se a variabilidade com que essa se manifesta em cada homem, ou até sua ausência. Há os que a têm mais ou menos, e também outros em que a mesma inexiste. As questões ligadas simplesmente à fé, via-de-regra, se alicerçam no íntimo e em experiências pessoais. Como mensurá-las, pois? Como trazê-las à luz da verdade, se os sentidos são, por vezes, comprovadamente falhos, e cada experiência particular de fé é vivenciada no interior da pessoa, a única capaz de perceber sua intensidade; e somente depois projetada no meio externo, utilizando-se como ferramenta a palavra, esta que também terá seu grau de processamento mais ou menos eficaz de forma a transmitir o que se sente a quem não o perceberá de outra maneira???

 A compreensão do Jesus apregoado pelas religiões dependerá, portanto, de variáveis sobre as quais não possuo elementos para juízo, o que me leva a optar pelo caminho do respeito. Cada homem tem sua história, sua percepção pessoal do mundo e da vida, e no decorrer de sua existência vai formando valores e adquirindo sua própria compreensão da realidade, que por sua vez se altera, em constante evolução, segundo os degraus existenciais que vai galgando.

 Entretanto, precisamos admitir que uma coisa é a verdade, outra é a percepção relativa que dela temos na medida em que se processa aquela evolução. O filósofo grego Parmênides criou uma máxima que dizia: O Ser é e o Não-Ser não é. Sua compreensão era de que o Ser deve ser eterno e indivisível, porque se não fosse eterno teria um início, e então teríamos de admitir que o Ser se originou no Não-Ser, o que é um absurdo; e não poderia também o Ser admitir partes, porque uma parte presumiria o Não-Ser das demais que não a comporiam, e novamente cairíamos no paradoxo. O que quero dizer é que, sobre Jesus, há uma verdade única e indefectível. Independente do que Dele pensarmos. Inobstante os limites de nossa percepção. Sua essência, sua verdadeira natureza, sua missão, deixemos, então, para os que estão preparados para Nele falar com a propriedade de homens de fé, de sacerdócio, de quem O experimentou dessa forma pessoal e transcendente.

 Certo é, porém, que todos O consideram um ser absolutamente especial e Lhe respeitam pelos ensinamentos, sabedoria, e principalmente pelo amor e compaixão que dedicou à humanidade, indistintamente, nos tempos em que andou sobre a Terra.

 Conforme já disse, todo homem tem sua história. Eu também tenho a minha. Particularmente, ao invés das passagens bíblicas que são por demais conhecidas, a figura de Cristo me foi apresentada na minha adolescência da forma como melhor se adequava à minha própria realidade. Não foi no interior de uma igreja, nem em uma missa, nem em um culto, nem por dor, sofrimento ou êxtase de fé. Foi na leitura de uma descrição poetizada da obra do poeta-filósofo libanês Gibran Khalil Gibran, cujos livros devorava naqueles tempos de juventude em que já procurava ardentemente por verdades. E é essa versão de Cristo - que no meu estágio evolutivo consigo entender e amar -, que pretendo hoje compartilhar com vocês, nesta edição natalina do Folha.

 No livro “Jesus, o Filho do Homem” (1928), Gibran apresenta 78 depoimentos de pessoas, conhecidas ou não, falando sobre Jesus. Com algumas iremos concordar, com outras não. Escolho aqui trechos que aprecio. Uma discípula teria dito: “Muitas vezes parece que ele foi um sonho sonhado por incontáveis homens e mulheres ao mesmo tempo, num sonho mais profundo que o sono e numa aurora mais serena que todas as auroras. E parecia que ao relatar esse sonho, de um para outro, começamos a julgar que fosse realidade, como se realmente tivesse acontecido; e ao dar corpo para nossa fantasia e uma voz para nossos desejos, tornamos tudo uma substância feita da nossa substância”.
Já Mateus, relembrando palavras de Jesus no Sermão da Montanha, afirma: “Procurai vosso irmão e fazei com ele a paz antes de procurar o templo (...) Pois na alma desses Deus construiu um templo que não será destruído, e no coração deles Ele erigiu um altar que jamais perecerá”.

 E um cliente do carpinteiro Jesus teria afirmado: “Se soubesse que aquele jovem com um serrote e uma plaina era um profeta, eu teria suplicado a Ele que falasse em vez de trabalhar, e teria pago muito mais pelas palavras”.

 Mas, o meu trecho favorito, é sem dúvida o encontro de Jesus com Maria Madalena, que transcrevo agora:

 “Foi no mês de junho que O vi pela primeira vez. Ele caminhava pelo trigal quando passei por perto com minhas damas de companhia, e Ele estava sozinho. O ritmo do Seu andar era diferente do andar dos outros homens, e o movimento do Seu corpo não se assemelhava a nada que eu já tivesse visto. Os homens não caminham sobre a terra daquela maneira. E, mesmo agora, não sei se Ele andava depressa, ou devagar.

 Minhas companheiras apontaram o dedo para Ele e conversaram umas com as outras num sussurro acanhado. Parei meu passo por um momento, e levantei a mão para saudá-Lo. Mas Ele não voltou a face, e não me olhou. E eu odiei-O. Senti-me impelida para dentro de mim mesma, e tinha frio como se tivesse estado num banho de neve. E tremia. Naquela noite, vi-O em meu sonho; e disseram-me depois que eu gritava dormindo e me agitava no leito.

 Foi no mês de agosto que O vi novamente, através da minha janela. Estava à sombra do cipreste, em meu jardim, e estava imóvel como se tivesse sido talhado na pedra como as estátuas de Antioquia e das outras cidades do País do Norte. E minha escrava, a egípcia, veio até mim e disse: “Aquele homem está novamente aqui. Está sentado ali, em vosso jardim.” E olhei para Ele, e minha alma estremeceu dentro de mim, pois Ele era belo. Seu corpo era perfeitamente coordenado, e cada parte parecia amar cada outra parte. Então, vesti-me com vestidos de Damasco, deixei minha casa e dirigi-me para Ele.Seria a minha solidão, ou seria Sua fragrância, que me impelia para Ele? Era uma fome em meus olhos que desejava a beleza ou era Sua beleza que buscava a luz dos meus olhos? Ainda hoje não o sei.

 Caminhei para Ele com meus vestidos perfumados e minhas sandálias douradas, as sandálias que o capitão romano me deu, sim, estas mesmas sandálias. Quando O alcancei, disse-Lhe: “Bom dia para vós.” E Ele disse: “Bom dia para ti, Miriam.” E olhou para mim, e Seus olhos-de-noite me viram como nenhum outro homem jamais me tinha visto. E subitamente senti-me como se estivesse despida, e fiquei envergonhada. Entretanto, Ele apenas dissera: “Bom dia para ti, Miriam.” E então eu Lhe disse: “Não quereis entrar em minha casa?” E Ele disse: “Já não estou em tua casa?” Eu não sabia o que Ele queria dizer com isso. Mas, agora eu sei.

 E eu disse: “Não quereis servir-vos de pão e vinho comigo?” E Ele disse: “Sim, Miriam, mas não agora.” Não agora, não agora, disse Ele. E a voz do mar estava nestas duas palavras, e a voz dos ventos e das árvores. E quando Ele mas disse, a vida falou à morte. Pois ninguém imagina, meu amigo, eu estava morta. Era uma mulher que se tinha divorciado de sua alma. Estava vivendo à parte deste Eu que agora estás vendo. Pertencia a todos os homens, e a nenhum. Chamavam-me prostituta e uma mulher possuída por sete demônios. eu era amaldiçoada, e era invejada.

 Mas, quando Seus olhos-de-aurora olharam dentro dos meus olhos, todas as estrelas de minha noite desvaneceram-se e tornei-me Miriam, somente Miriam, uma mulher perdida para a terra que tinha conhecido, e reencontrando-se em novos lugares. E eu Lhe disse: “Entrai em minha casa e partilhai comigo o pão e o vinho.” E Ele disse: ”Por que me convidas para ser teu hóspede?”E eu disse: ”Rogo-vos que entreis em minha casa.” E era tudo o que era terra em mim e tudo o que era céu em mim chamando por Ele. Então, Ele olhou-me, e o meio-dia dos Seus olhos estava sobre mim, e Ele disse: ”Tu tens muitos amantes; entretanto só eu te amo. Os outros homens amam a si mesmos quando te procuram. Eu te amo por ti mesma. Os outros homens veem em ti uma beleza que desaparecerá mais cedo do que seus próprios anos. Mas eu vejo em ti uma beleza que não esmaecerá e, no outono dos teus dias, esta beleza não terá receio de olhar-se no espelho, e não será ofendida. Somente eu amo o que não se vê em ti.” Depois, Ele disse numa voz suave: ”Vai embora agora. Se este cipreste é teu, e não quiseres que me sente à sua sombra, prosseguirei meu caminho.”

 E gritei para Ele e disse-Lhe: ”Mestre, entra em minha casa. Tenho incenso para queimar para ti, e uma bacia de prata para teus pés. Tu és um estranho e, entretanto, não és um estranho. Peço-te, vem à minha casa.” Então, Ele levantou-se e olhou-me como as estações devem olhar para os campos. E sorriu. E disse novamente: ”Todos os homens te amam por si mesmos. Eu te amo por ti mesma.” E afastou-se, caminhando.

 Mas nenhum outro homem jamais caminhou da maneira como Ele caminhava. Era uma brisa nascida no meu jardim que se movia para o leste? Ou era uma tempestade que abalaria todas as coisas até seus alicerces? Eu não sabia, mas naquele dia o poente de Seus olhos matou o dragão que havia em mim, e tornei-me uma mulher, tornei-me Miriam, Miriam de Mijdel.”

 Que o Cristo de todos e o Cristo de cada um de nós se faça presente em todos os lares e, sobretudo, em nossos corações. Que Ele, sobretudo, nos dê o maior de todos os presentes: a Paz. Feliz Natal!!!

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