Exercício ilegal da medicina, aliciamento, prejuízos financeiros e danos à saúde



Denúncias chegaram à reportagem do Folha e dizem respeito ao aliciamento que uma rede de óticas, que possui lojas na região da Campanha e Zona Sul do Estado, está realizando junto a clientes desavisados, que estão tendo não só prejuízos financeiros (entre compras desnecessárias e alegadamente induzidas), mas também de saúde que, em alguns casos, podem se tornar irreversíveis. O esquema envolve “consultas”, fez diversas vítimas em Dom Pedrito e chegou ao conhecimento do Executivo Municipal e do Ministério Público.

Tudo começa na confusão entre profissionais da área da optometria, profissional que a rigor trabalha apenas na comercialização ou fabricação de óculos (Decreto Federal N° 20.931, proíbe o optometrista de possuir consultório para atender clientes), e o médico oftalmologista, este sim habilitado para diagnosticar problemas oculares e adaptar lentes de contato, prescrever óculos, colírios, cirurgias, etc. de forma correta.

Conforme dados, documentos e áudios (transcritos no decorrer da matéria) obtidos pela reportagem do Folha, o esquema funciona da seguinte maneira:

1 – As funcionárias da rede de óticas aliciam clientes (filas de mercados, farmácias, filas de bancos e, até mesmo, escolas), ofertando “consultas gratuitas”, sem pagamentos de taxas de transporte, já que a suposta consulta é realizada em Bagé.

2 – O paciente é levado para outra loja da rede, na Rainha da Fronteira, onde a “consulta” acontece com um optometrista, em alguns relatos, inclusive, o profissional é “introduzido” como se fosse “médico”.

3 – Uma receita é emitida, buscando solucionar suposto problema de visão do paciente, no entanto, a receita fica retida com a ótica, a partir daí, a vítima fica obrigada a comprar o óculos prescrito, naquela que deveria ser uma consulta “gratuita”.

Em um dos casos, a vítima chegou a pagar R$ 900,00 por um óculos, no entanto, ao verificar o valor do mesmo produto em outra ótica, o valor chegar a R$ 360,00, evidenciando, também, superfaturamento nas compras – uma das vítimas foi induzida a comprar quatro óculos diferentes. Em outros casos, pacientes tiveram lesões oculares, constatadas posteriormente ao procurarem oftalmologistas.

No áudio transcrito abaixo, uma das vendedoras chega a apresentar o optometrista, funcionário da rede, como médico, no entanto, salienta que a consulta poderia ser marcada com uma oftalmologista, de fato. Leia:

Olá, bom dia (nome da cliente), tudo bem? (nome da funcionária) aqui da ótica, só pra te dar uma posição, sobre os teus olhos, hã (sic) eu já falei com uma supervisora nossa, ela já vai entrar em contato lá com o laboratório pra eles passarem bem certinho o que que deu do teu óculos né, mas que a princípio não tinha dado nada, a aí segundo ela, segunda-feira ela já vai nos dar uma posição pra ver quando a gente pode marcar tua revisão com um médico, lá com o optometrista (citado o nome do profissional, optometrista, mas apresentado como médico). Não sei se ela vai marcar com ele ou de repente com uma oftalmo mesmo, que aí pra de repente se tu não precisa de colírio ou outra coisinha pra poder curar o teu olho né! Pra tirar essa ardência! Tá, mas nem te preocupa que sobre essa prestação que tá atrasadinha já coloquei observação ali no cadastro da (nome de uma cliente) que vai ficar uns dias em atraso devido a não adaptação com o óculos que só vai ser pago depois que tiver tudo ok, tá! Mas nem te assusta que o juro depois eu vou tirar, aí tu paga só o valorzinho da parcela”.

No caso em questão, a cliente fez uma lente “branca” junto ao optometrista, porém, não se adaptou. Em menos de um mês, o profissional reexamina a mulher e atesta que houve erro na prescrição, para melhorar o olho da mulher, ele recomenda uma dioptria (unidade que se refere ao poder de refração das lentes ), indicando lentes fotocromáticas, sendo assim, o custo sobre para R$ 2500.00, no entanto, o valor é abatido dos R$ 960,00 anteriormente propostos:

Olá, bom dia (nome da paciente), falei com a supervisora como teu tinha te dito ontem, e aí para fazer as lentes, realmente no caso à gente te consegue um desconto muito bom, que é no caso (sic) das lentes com escurecimento. Eu tava vendo aqui no teu cadastro, às lentes que tu pagou… Pagou, não… vai começar a pagar depois que estiver tudo ok, pagou R$ 960,00, aí, as lentes com escurecimento na realidade em torno, só as lentes, de R$ 2.500,00, somente as lentes, aí, no caso, R$ 2.500,00, menos os R$ 960,00 que já tá no carnezinho, daria em torno de R$ 1550,00 a diferença, mas mesmo assim eu falei que o valor tá bem alto, aí eu conversei com a supervisora, expliquei bem a situação que tu nem começou a pagar ainda o primeiro (primeira parcela) e ainda teve mais outro nesse valor, que aí no caso daria uma parcela de R$ 300,00, aí ela assim, conseguiu baixar teu óculos pra… aí essas lentes em vez de dar R$ 1500.00, dá R$ 1.170,00, aí ela conseguiu baixar mais… além dos R$ 960,00 que já tá no carnê, ela conseguiu baixar mais ainda praticamente quase R$ 400,00… Então, aí tem que ver como é que é que tu gostaria de fazer, se fica bom pra ti pra gente poder também te auxiliar, as lentes de R$ 2.500,00 a gente consegue baixar e deixar ela em R$ 1.170,00, mais os R$ 960,00 que já está em outro carnê, tá?

Em outro áudio, a funcionária da óptica diagnostica um caso de pterígio, porque, segundo ela a empresa faz “treinamento” das funcionárias e estudos sobre os olhos:

Oi dona (nome da cliente), boa tarde. A respeito do pterígio, sim… mesmo que tenham sido as meninas que tenham lhe passado aqui, sim… a gente faz treinamento e a gente estuda também sobre os olhos então mais ou menos a gente tem uma ideia. Claro, como eu lhe disse ontem, a gente não é médica, quem vai lhe dar a resolução final é a doutora, ela que vai lhe examinar, como eu lhe disse… se precisar de uma medicação ela vai lhe dar, então não tem como a gente lhe dar o diagnóstico final aqui, mas mais ou menos a gente tem como olhar pro olho da cliente (sic) e ter mais ou menos uma ideia tá! E como eu lhe disse, gostaria muito de resolver o seu problema né, mas aí como a (cliente) não quer então, vou ter que falar com a direção pra ver o que a gente pode fazer, mas que pena, eu gostaria muito de resolver pra senhora. Como eu lhe expliquei ontem né, bem como eu lhe falei”.

A rigor, o pterígio é resolvido com cirurgia, no entanto, houve prescrição para uso de óculos.

Não parou por aí: a ótica chegou a prestar atendimentos em uma escola municipal, onde, para uma das crianças, foi “diagnosticada” necessidade do uso de óculos, além de lhe ser entregue um folheto da empresa, no entanto, atenta ao fato, à mãe da criança foi até um oftalmologista, onde restou atestado que o menino não precisava fazer uso de óculos.

A Secretaria de Educação soube posteriormente do fato e prontamente notificou as diretoras a não receber a empresa nos educandários.

Como o acontecimento chegou ao conhecimento do Executivo, a situação foi levada ao Ministério Público local, posteriormente, reunião foi realizada em Porto Alegre, no dia 8 de setembro, junto ao gabinete do Procurador-Geral de Justiça, Marcelo Lemos Dornelles, com participação do subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Júlio César de Melo, a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Saúde, Gisele Müller Monteiro, o coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal, Rodrigo da Silva Brandalise, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Consumidor, Gustavo Azevedo e Souza Munhoz, a médica titular do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) Isabel Habeyche Cardoso , presidente da Sociedade de Oftalmologia do Rio Grande do Sul (SORIGS), Marcos Brunstein e o presidente da Associação Médica do Rio Grande do Sul (AMRIGS), Gerson Junqueira Júnior. Representando o município, o vice-prefeito Diego da Rosa Cruz, secretário de Governo Daniel Brum Soares e o secretário de Educação Marco Antônio Rodrigues.

A reportagem entrou em contato com a médica Isabel Habeyche Cardoso, conselheira do CREMERS. Ela salienta que é importante a população conhecer a diferença entre optometrista e oftalmologista. “Muitos optometristas se apresentam, inclusive, vestindo jaleco branco, mas ele não é médico. As pessoas costumam procurar este profissional pela ilusão de ser mais barato”, salienta a médica.

O secretário de Governo, Daniel Brum Soares, enfatiza que o Executivo ainda está tomando nota situação, no entanto, quem foi lesado deve procurar o Procon (pelo telefone 3243-5409, e-mail procondp@gmail.com ou na Rua Borges de Medeiros n° 222, em frente a Prefeitura) e efetivar uma denúncia formal, para possíveis ressarcimentos.

Entenda:

Em junho de 2020, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) atestou que são válidos dispositivos de decretos presidenciais que limitam a atuação dos optometristas à comercialização ou fabricação de óculos – impedidos de realizar exames e prescrever óculos ou lentes de contato.

O oftalmologista é o médico especialista em cuidar da saúde ocular, capacitado para diagnosticar e tratar problemas da visão, prescrever óculos, adaptar lentes de contato, fazer exames e realizar cirurgias, quando forem necessárias.

A formação de um óptico-optometrista permite sua atuação nas áreas técnicas de comércio e laboratório (fábrica) de produtos oftálmicos, sendo sua função interpretar o receituário do médico oftalmologista; produzir lentes, montar e consertar óculos, cuidando de sua manutenção; e orientar na escolha do modelo mais adequado de lente e armação de acordo com a necessidade apresentada pelo paciente. O optometrista NÃO faz a avaliação da visão, nem prescreve óculos. Isso é função do médico oftalmologista.

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